sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Yuri Firmeza




Yuri Firmeza, artista cearense famoso por suas performances, questiona os mecanismos que dão validade a uma obra de arte. Firmeza criou o artista-plástico japonês Souzousareta Geijutsuka (o nome significa “artista inventado”) e a sua exposição Geijitsu Kakuu (quer dizer “arte e ficção”), apesar das pistas ninguém descobriu a farsa, toda imprensa embarcou nos mirabolantes releases de divulgação criados pelo artista e sua equipe. Foi criada uma grande expectativa diante do tal artista japonês, no dia marcado ele não veio, no lugar dele, impressos de e-mails trocados entre Yuri Firmeza e um amigo sobre a idéia de criar um artista imaginário e como isso poderia ser recebido pelo público e pela imprensa. Trecho do conteúdo do impresso: “O que me interessa é interrogar sobre a qualidade do que compõe todo esse sistema de legitimação estética: críticos, jornais, artistas, curadores, galerias, museus e o próprio público”. O artista mostra o quanto é escorregadio o caminho do crítico, ainda mais numa época onde o “gesto” também é objeto da arte.

Giacometti



"Ele: Um dia, no meu quarto, ao olhar para uma tolha sobre a cadeira, tive a nítida impressão de que não apenas cada objeto estava só, como tinha um peso – ou melhor, uma ausência de peso – que o impedia de pesar sobre o outro. A toalha estava só, tão só que eu tive a sensação de poder retirar a cadeira sem que a toalha se movesse. Ela possuía seu próprio lugar, seu próprio peso, e até seu próprio silêncio. O mundo era leve, leve..."



Trecho extraído do livro O ateliê de Giacometti de Jean Genet.

Segundo James Lord, autor da biografia de Giacometti, "o texto de Jean Genet é uma dessas raras instâncias na arte em que a natureza de uma pessoa torna-se, com êxito, o material da criação de outra pessoa". Recomendo "O ateliê de Giacometti".

Hundertwasser



"A linha reta não existe na natureza" Hundertwasser


Tomei a liberdade de batizar a sua poética de "estética da favela", amálgama entre arquitetura e paisagem, harmonia sem simetria, ordem dentro do caos. Obra vertiginosa, seu espaço é delirante e coloca teu gosto a prova.

Solução para as olimpíadas RIO 2016.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

George Rousse



Pequenas considerações sobre o trabalho do artista:

Questiona a realidade da fotografia, o que ele fotografa não existe. George Rousse sempre escolhe espaços em transição, em situação ambígua de existência, com uma técnica bastante apurada produz ilusões, imagens anamorficas - só fazem sentido a partir de um ponto. A fotografia é a linguagem que melhor acolheu sua proposta.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Roman Opalka






Diante das pouquíssimas informações em português sobre Opalka, resolvi me aventurar, faço uma pequena análise sobre o seu trabalho.

Cada tela se chama Detalhe, persegue a grandeza do sublime, o que não se controla. Há mais de quarenta anos espera pela morte no seu sistema de repetições, pinta uma seqüência de números brancos sobre o fundo negro. Ao longo dos anos adicionou cada vez mais branco ao fundo, hoje o branco é no branco. Seu trabalho carrega o trauma do cárcere na juventude, onde o único anúncio do tempo era uma fresta de luz onde contava os dias, a liberdade acrescentou branco a sua vida, aquela pequena entrada de luz se alargou. Seu sistema privilegia a rotina, sua obra é uma prisão, durante toda vida não desviou uma linha do que se dispôs. Fugir do modelo que criou significa implodir o que construiu. Elegeu um tamanho de tela (196 cm x135 cm), um tamanho de pincel, diariamente pinta a passagem do tempo a partir do canto superior esquerdo, todos os números em ordem crescente, começando pelo número um, em fileiras horizontais. Como se aprisiona o infinito? Além de tirar diariamente fotos suas. Camisa branca, fundo branco. Opalka retrata sua degeneração, sua pequena morte diária, o tempo é sua obsessão, o que o levará inexoravelmente a morte.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

EL DINOSAURIO


 

Cuando despertó, el dinosaurio todavía estaba allí.


 


Augusto Monterroso


 


 

O dinossauro me acompanha, por onde passo, pegadas.

sábado, 22 de agosto de 2009

HILDA HILST

"que o homem tenha um cérebro sim, mas que nunca alcance, que sinta amor sim mas nunca fique pleno, que intua sim meu existir mas que jamais conheça a raiz do meu mais ínfimo gesto, que sinta paroxismos de ódio e de pavor a tal ponto que se consuma e assim me liberte, que aos poucos deseje nunca mais procriar e coma o cu do outro, que rasteje faminto de todos os sentidos, que apodreça, homem, que apodreças, e decomposto, corpo vivo de vermes, depois urna de cinzas, que os teus pares te esqueçam, que eu me esqueça e focinhe a eternidade à procura de uma melhor idéia, de uma nova desengonçada geometria, mais êxtase para minha plenitude de matéria, licores e ostras. Vem vem depressa, Hillé, olha um bichinho tão delicado engolindo outro."


"você já viu Deus? Eu não, Deus me livre."


"Ai Senhor, tu tens igual a nós o fétido buraco? Escondido atrás mas quantas vezes pensado, escondido atrás, todo espremido, humilde mas demolidor de vaidades, impossível ao homem se pensar espirro do divino tendo esse luxo atrás(...) Ó buraco, estais aí no teu senhor? Há muito que se louva o todo espremido. Estás destronado quem sabe, senhor, em favor desse buraco? Estais me ouvindo? Altares, velas, luzes, lírios, e no topo uma imensa rodela de granito, umas dobras de mármore, um belíssimo ônix, uns arremedos de carne, do cu escultores líricos."


Mais uns trechinhos da Obscena Senhora D.


quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Saudade

Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida.


Clarisse Lispector, 27 de maio de 1968.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Poemas Eróticos

I

EPIGRAMA

Amar, foder: uma união

De prazeres que não separo.

A volúpia e os desejos são

O que a alma possui de mais raro.

Caralho, cona e corações

Juntam-se em doces efusões

Que os crentes censuram, os loucos.

Reflete nisto, oh minha amada:

Amar sem foder é bem pouco,

Foder sem amar não é nada.

LA FONTAINE

II

Quinze anos eu passara, os primeiros da vida,

Sem ter sabido nunca o que era esse furor

Em que a dança do cu deixa na alma um torpor

Após a ânsia viril na cona ser remida.


Não que a morte tão doce e tão apetecida

Não me impelisse um forte, juvenil ardor,

Mas o membro que eu tinha, embora lutador,

Não chegava a deixar a Dama bem servida.


Trabalho desde então com pertinácia rara

Por compensar a perda e o tempo que não pára,

Pois o sol no poente ameaça os meus dias.


Oh Deus, venho rogar-te, meu zelo ajudai:

Para tão doce agir, meus anos alongai

Ou devolvei-me o tempo em inda eu não fodia!

MALHERBE

III

UMA PUTA


Era uma puta precoce e consumada:

Deu no ventre da mãe uma guinada

Tal que juntou cona a cona e, maravilha,

O pai fodeu conjuntas mãe e filha.

ROCHESTER

domingo, 16 de agosto de 2009

Marquês de Sade

Uns trechinhos só para instigar:


"Nada é mais estimulante do que o primeiro crime impune."


"(...) era comum ouvi-lo dizer que, para ser verdadeiramente feliz nesse mundo, um homem somente havia de se entregar a todos os vícios, sem nunca se permitir virtude alguma, pois não se tratava de sempre fazer o mal, como de nunca fazer o bem"


"Quanto aos moços, que doravante passaremos a chamar de fodedores, o tamanho de seus membros foi o único critério: nada queriam abaixo de dez ou doze polegadas de comprimento por sete e meia de circunferência."


"Desprezo Deus! Quereis minha bunda? Está com merda."



Na obra "Os 120 dias de Sodoma ou escola da Libertinagem" podemos perceber a presença marcante da ordem na desordem. Tudo no castelo é enumerado e catalogado para melhor servir a libertinagem. Quase todos os caprichos sádicos desta obra, são contados antes de serem postos em prática. Segundo a Simone Beauvoir, quando Sade escolhe o imaginário ele consegue se instalar com segurança, 'no imaginário não há risco de decepções', ou como diz o Marquês ao longo da obra: "O gozo dos sentidos é sempre regido pela imaginação. O homem só pode aspirar a felicidade utilizando todos os caprichos da imaginação". É pela imaginação que Sade escapará "ao espaço, ao tempo, a prisão, à polícia, ao vazio da ausência, as presenças opacas, aos conflitos da existência, a morte, à vida e a todas as contradições. Não é pela crueldade que se realiza o erotismo de Sade: é pela perversão. No sistema sadeano a ordem é produtora do excesso.


Indico o FILME do Pier Paolo Pasolini, "Saló ou os 120 de Sodoma".

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

A obscena Senhora D

"(...) o que é paixão? O que é sombra? eu mesmo te pergunto e eu mesmo te respondo: Hillé, paixão é a grossa artéria jorrando volúpia e ilusão, é a boca que pronuncia o mundo, púrpura sobre a tua camada de emoções, escarlate sobre a tua vida, paixão é esse aberto do teu peito, e também teu deserto. E sombra, Hillé, é nosso passo, nossa desesperança subida."



A Hilda é uma dessas mulheres que morreram com a certeza de dever cumprido, nascida em 30 do século passado, dedicou sua vida a criação literária. Parou de escreve quando cria já tudo ter dito. Hilst começa a ser lida agora, está escritora completa passeou pela prosa, dramaturgia e poesia. Hilda é a Casa do Sol.


terça-feira, 11 de agosto de 2009

Marcelino Freire

"Bicha devia nascer sem coração. É, devia nascer. Oca. É, feito uma porta. Ai, ai. Não sei se quero chá ou café. Não sei. Meus nervos a flor de algodão. Acendo um cigarro e vou assistir televisão. Televisão. O especial de Roberto Carlos todo ano. Ai, que amolação! Esse coração de merda. Bicha devia nascer vazia. Dentro do peito, um peru da sadia. É, devia. (...)"


"(...) Conquista de território. Aí o bofe tomou um Ki-suco de morango, comeu um omelete, conversou um pouco e nada. Não rolou nada naquele dia, acredita? Ele travou, não sei. Não-me-toque, eu não toquei. E assim a gente ficou. Ele saiu chupando um chiclete de uva verde. Eu amarelei. (...)"


"(...) Pior coisa, amiga, é uma trepada quando fica engasgada. Vira uma lembrança agoniada. Uh! (...)"


"(...) Não agüentei ficar em casa, sozinho, e vim tomar um café com você. Essa bosta de tristeza que bate no coração da gente, de repente. Que desmantelo! Bem que Roberto podia cortar esse cabelo. E eu, nascer sem coração, repetiu. É sem coração."



Pequenas considerações sobre o autor:


Marcelino é cru como o sotaque que faz questão de carregar, sua poesia reside na ternura com que trata os marginais. Cada "ponto" cria uma imagem e te transporta para o outro lado, é o assombro do ladrão diante da vítima.

Glauco Mattoso

I

O PEIDO QUE A NEGA DEU
QUASE NÃO CABE NO CU! [mote tradicional]

Muita merda já fedeu
Glosada de mote em mote,
Mas não há glosa que esgote
O peido que a nega deu.
Outro cheiro é mote meu:
Chulé de macho, um tabu
Que afugenta até urubu!
Chupo o pé, cresce-lhe a pica
E, de tão grossa que fica,
Quase não cabe no cu!

II

SONETO OBSTIPADO [112]

Prisão de ventre é um drama não descrito
em prosa ou poesia, desde Homero.
Por isso meter meu bedelho quero
no bojo deste tão tácito mito.

Quem tem seu intestino assim constrito
defeca sob esforço tão severo
que rompe internamente o tubo "entero"
para externar um "copro" que é já "lito".

Cagada semanal ou quinzenal
é como um parto sem anestesia
em que o bebê não quer nascer normal.

Enquanto a tripa inchada se alivia,
o pobre constipado lê o jornal,
absorto na seção de economia.


III

SONETO HIGIÊNICO [143]

Se o orifício anal é um olho cego,
que pisca e vai fazendo vista grossa
a tudo que entra e sai, que entala ou roça,
três vezes cego sou. Que cruz carrego!

Porém não pela mão me prende o prego,
mas pela língua suja, que hoje coça
o cu dos outros, feito um limpa-fossa,
e as pregas, como esponja escrota, esfrego.

O "beijo negro" é o último degrau
desta degradação em que mergulho,
maior humilhação que chupar pau.

Sujeito-me com náusea, com engulho,
ao paladar fecal e ao cheiro mau,
e, junto com a merda, engulo o orgulho.


IV

SONETO BORRADO [1009]

Gostoso é ter alguém que, a meu comando,
me lamba o cu na hora que eu quiser.
Se diz que quer lamber ou que não quer,
respondo que estou pouco me lixando.

Se quero, eu chamo, e não importa quando.
A língua pode ser uma qualquer,
nem ligo se for de homem ou mulher,
se sujo sempre a mesma ou sujo um bando.

Cocô, se causa nojo na pessoa,
melhor ainda: aí que sou cruel
e faço limpar tudo numa boa!

Bom mesmo é quando um macho de quartel
só lambe se apanhar: quanto mais doa,
mais sórdido papel faz de papel!


- Glauco Mattoso –


"(...) E lembre-se de mim sempre que estiver
descalçando os tênis, hem? (risos) Até já! GLAUCO."

Dentre outras coisas, o Glauco é podolatra.

Fiz uma pequena seleção, espero que dê água na boca.

Além do Ponto

Para Livio Amaral



Chovia, chovia, chovia e eu ia indo por dentro da chuva ao encontro dele, sem guarda-chuva nem nada, eu sempre perdia todos pelos bares, só levava uma garrafa de conhaque barato apertada contra o peito, parece falso dito desse jeito, mas bem assim eu ia pelo meio da chuva, uma garrafa de conhaque na mão e um maço de cigarros molhados no bolso. Teve uma hora que eu podia ter tomado um táxi, mas não era muito longe, e se eu tomasse um táxi não poderia comprar cigarros nem conhaque, e eu pensei com força então que seria melhor chegar molhado da chuva, porque aí beberíamos o conhaque, fazia frio, nem tanto frio, mais umidade entrando pelo pano das roupas, pela sola fina esburacada dos sapatos, e fumaríamos beberíamos sem medidas, haveria música, sempre aquelas vozes roucas, aquele sax gemido e o olho dele posto em cima de mim, ducha morna distendendo meus músculos.


Mas chovia ainda, meus olhos ardiam de frio, o nariz começava a escorrer, eu limpava com as costas das mãos e o líquido do nariz endurecia logo sobre os pêlos, eu enfiava as mãos avermelhadas no fundo dos bolsos e ia indo, eu ia indo e pulando as poças d'água com as pernas geladas. Tão geladas as pernas e os braços e a cara que pensei em abrir a garrafa para beber um gole, mas não queria chegar na casa dele meio bêbado, hálito fedendo, não queria que ele pensasse que eu andava bebendo, e eu andava, todo dia um bom pretexto, e fui pensando também que ele ia pensar que eu andava sem dinheiro, chegando a pé naquela chuva toda, e eu andava, estômago dolorido de fome, e eu não queria que ele pensasse que eu andava insone, e eu andava, roxas olheiras, teria que ter cuidado com o lábio inferior ao sorrir, se sorrisse, e quase certamente sim, quando o encontrasse, para que não visse o dente quebrado e pensasse que eu andava relaxando, sem ir ao dentista, e eu andava, e tudo que eu andava fazendo e sendo eu não queria que ele visse nem soubesse, mas depois de pensar isso me deu um desgosto porque fui percebendo percebendo, por dentro da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era. Começou a acontecer uma coisa confusa na minha cabeça, essa história de não querer que ele soubesse que eu era eu, encharcado naquela chuva toda que caía, caía, caía e tive vontade de voltar para algum lugar seco e quente, se houvesse, e não lembrava de nenhum, ou parar para sempre ali mesmo naquela esquina cinzenta que eu tentava atravessar sem conseguir, os carros me jogando água e lama ao passar, mas eu não podia, ou podia mas não devia, ou podia mas não queria ou não sabia mais como se parava ou voltava atrás, eu tinha que continuar indo ao encontro dele, ou podia mas não queria ou não sabia mais como se parava ou voltava atrás, eu tinha que continuar indo ao encontro dele, que me abriria a porta, o sax gemido ao fundo e quem sabe uma lareira, pinhões, vinho quente com cravo e canela, essas coisas do inverno, e mais ainda, eu precisava deter a vontade de voltar atrás ou ficar parado, pois tem um ponto, eu descobria, em que você perde o comando das próprias pernas, não é bem assim, descoberta tortuosa que o frio e a chuva não me deixavam mastigar direito, eu apenas começava a saber que tem um ponto, e eu dividido querendo ver o depois do ponto e também aquele agradável dele me esperando quente e pronto.



Um carro passou mais perto e me molhou inteiro, sairia um rio das minhas roupas se conseguisse torcê-las, então decidi na minha cabeça que depois de abrir a porta ele diria qualquer coisa tipo mas como você está molhado, sem nenhum espanto, porque ele me esperava, ele me chamava, eu só ia indo porque ele me chamava, eu me atrevia, eu ia além daquele ponto de estar parado, agora pelo caminho de árvores sem folhas e a rua interrompida que eu revia daquele jeito estranho de já ter estado lá sem nunca ter, hesitava mas ia indo, no meio da cidade como um invisível fio saindo da cabeça dele até a minha, quem me via assim molhado não via nosso segredo, via apenas um sujeito molhado sem capa nem guarda-chuva, só uma garrafa de conhaque barato apertada contra o peito. Era a mim que ele chamava, pelo meio da cidade, puxando o fio desde a minha cabeça até a dele, por dentro da chuva, era para mim que ele abriria sua porta, chegando muito perto agora, tão perto que uma quentura me subia para o rosto, como se tivesse bebido o conhaque todo, trocaria minha roupa molhada por outra mais seca e tomaria lentamente minhas mãos entre as suas, acariciando-as devagar para aquecê-las, espantando o roxo da pele fria, começava a escurecer, era cedo ainda, mas ia escurecendo cedo, mais cedo que de costume, e nem era inverno, ele arrumaria uma cama larga com muitos cobertores, e foi então que escorreguei e caí e tudo tão de repente, para proteger a garrafa apertei-a mais contra o peito e ela bateu numa pedra, e além da água da chuva e da lama dos carros a minha roupa agora também estava encharcada de conhaque, como um bêbado, fedendo, não beberíamos então, tentei sorrir, com cuidado, o lábio inferior quase imóvel, escondendo o caco do dente, e pensei na lama que ele limparia terno, porque era a mim que ele chamava, porque era a mim que ele escolhia, porque era para mim e só para mim que ele abriria a sua porta. Chovia sempre e eu custei para conseguir me levantar daquela poça de lama, chegava num ponto, eu voltava ao ponto, em que era necessário um esforço muito grande, era preciso um esforço muito grande, era preciso um esforço tão terrível que precisei sorri mais sozinho e inventar mais um pouco, aquecendo meu segredo, e dei alguns passos, mas como se faz? Me perguntei, como se faz isso de colocar um pé após o outro, equilibrando a cabeça sobre os ombros, mantendo ereta a coluna vertebral, desaprendia, não era quase nada, eu mantido apenas por aquele fio invisível ligado à minha cabeça, agora tão próximo que se quisesse eu poderia imaginar alguma coisa como um zumbido eletrônico saindo da cabeça dele até chegar na minha, mas como se faz? Eu reaprendia e inventava sempre, sempre em direção a ele, para chegar inteiro, os pedaços de mim todos misturados que ele disporia sem pressa, como quem brinca com um quebra-cabeça para formar que castelo, que bosque, que verme ou deus, eu não sabia, mas ia indo pela chuva porque esse era meu único sentido, meu único destino: bater naquela porta escura onde eu batia agora. E bati, e bati outra vez, e tornei a bater, e continuei batendo sem me importar que as pessoas na rua parassem para olhar, eu quis chamá-lo, mas tinha esquecido seu nome, se é que alguma vez o soube, se é que ele o teve um dia, talvez eu tivesse febre, tudo ficara muito confuso, idéias misturadas, tremores, água de chuva e lama e conhaque batendo e continuava chovendo sem parar, mas eu não ia mais indo por dentro da chuva, pelo meio da cidade, eu só estava parado naquela porta fazia muito tempo, depois do ponto, tão escuro agora que eu não conseguiria nunca mais encontrar o caminho de volta, nem tentar outra coisa, outra ação, outro gesto além de continuar batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, batendo, na mesma porta que não abre nunca.



O CAIO FERNANDO ABREU, sempre acerta no IMAGINÁRIO.

Que mistério tem Clarice?

TENTAÇÃO



Clarice Lispector


Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.


Na rua vazia as pedras vibravam de calor - a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.


Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.


Lá vinha ele trotando, à frente de sua dona, arrastando seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.


A menina abriu os olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.


Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo.


Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.


Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos.


No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos - lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.


Mas ambos eram comprometidos.


Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.


A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-la dobrar a outra esquina.


Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás


__________________


Conto extraído de LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.



O Caio Fernando Abreu cita Clarice no conto: Dois ou três almoços, uns silêncios.


"Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector "Tentação" na cabeça estonteada de encanto: "Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível". Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece."


Que combinação mágica, que comentário luxuoso, quem me dera dois ou três almoços e uns silêncios tentadores.


segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Álbum de Família

(Apaga-se o palco, emudece o speaker: ilumina-se uma nova cena – ângulo de dormitório de colégio. Cama de grades; deitadas lado a lado – Glória e Teresa, ambas em finíssimas camisolas, muito transparentes. São meninas que aparentam 15 anos. Há entre as duas um ambiente de idílio.)

Teresa – Você Jura?

Glória – Juro.

Teresa – por Deus?

Glória - Claro!

(NOTA IMPORTANTE: é preciso que se observe um desequilíbrio entre as duas: o sentimento de Teresa é mais ativo, mais absorvente; ao passo que Glória, embora admitindo o Idílio, resiste mais ao êxtase).

Teresa – Então, quero ver. Mas, depressa que a irmão pode vir.

Glória (erguendo a cabeça) – Juro que...

Teresa (retificando) – Juro por Deus...

Glória – Juro por Deus ...

Teresa – ... que não me casarei nunca...

Glória – ... que não me casarei nunca...

Teresa – ... que serei fiel até à morte.

Glória – ... que serei fiel até a morte.

(Pausa. As duas se olham. Teresa encosta o nariz no rosto de Glória, amassa o nariz no rosto de Glória).

Teresa – E que nem namora.

Glória – E que nem namoro.

Teresa (apaixonada) – Também juro por Deus que não me casarei nunca, que só amarei você, e que nenhum homem me beijará.

Glória (menos trágica) – Só quero ver.

Teresa (trêmula) – Segura na minha mão assim. (olhando-a profundamente) Se você morrer um dia nem sei!

Glória – Não fala bobagem!

Teresa – mas não quero que você morra, nunca! Só depois de mim. (com uma nova expressão, embelezada) Ou então, ao mesmo tempo, juntas. Eu e você enterradas no mesmo caixão.

Glória – Você gostaria?

Teresa (no seu transporte) – seria tão bom, mas tão bom!

Glória (prática) – Mas no mesmo caixão não dá – nem deixam!

Teresa (sempre apaixonada) – Me beija!

(Glória beija na face com certa frivolidade).

Teresa – Na boca!

(beijam-se na boca; Teresa de forma absoluta).

Teresa (agradecida) – Nunca nos beijamos na boa – é a primeira vez!

Glória (como se experimentando o gosto do beijo) – Interessante!

Teresa (um pouco inquieta) – Gostou, mas muito?

Glória – Na boca é diferente, não é?

Teresa – Você vai-se esquecer de mim!

Glória (frívola) – Boba!

Teresa (arrebatada) – Você nunca encontrará alguém que te ame como eu – duvido!

Glória – Então, não sei?

Teresa (sempre com iniciativa) – Me beija outra vez...

(depois de um beijo longo)

Glória (sem saber se gostou ou não) – Teus lábios são frios, quer dizer – molhados.

Teresa – Lógico. É a saliva...

(Apaga-se a pequena cena do dormitório)


 

Nelson Rodrigues é um caso antigo, desde os doze.

sábado, 8 de agosto de 2009

O Caderno Rosa de Lori Lamby

"Eu tenho oito anos. Eu vou contar tudo do jeito que eu sei porque mamãe e papai me falaram para eu contar do jeito que eu sei. E depois eu falo do começo da história. Agora eu quero falar do moço que veio aqui e que a mami disse agora que não é tão moço, e então eu me deitei na minha caminha que é muito bonita, toda cor de rosa. E mami só pode comprar essa caminha depois que eu comecei a fazer isso que eu vou contar. Eu deitei com a minha boneca e o homem que não é tão moço pediu para eu tirar a calcinha. Eu tirei. Aí ele pediu para eu abrir as perninhas e ficar deitada e eu fiquei"


"(...) Aí ele pediu para eu esperar, e foi até aquela mesinha do meu quarto perto do espelho. É um espelho bem comprido, em volta tem uma pintura cor-de-rosa, ele pediu para eu ficar deitadinha nas almofadas d chão na frente do espelho com as pernas bem abertas. Eu fiquei. Aí ele tirou da malinha dele uma pasta que parecia pasta de dente grande. (...) Ele passou chocolate no piu-piu dele, aí eu fui lambendo e era demais gostoso, e o moço falava: ai que gostoso, sua putinha. "


HILDA HILST

Coisas da Hilda, com ilustrações de Millôr. O Caderno Rosa de Lory Lamby é delicioso, desses livros que se lêem numa sentada.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

VEREDAS

Observou o porco gordo, cada dia mais feliz bruto, capaz de, pudesse, roncar e engolir por sua suja comodidade o mundo todo?


 


 


 

    Grande Sertão: Veredas, livro do João.

terça-feira, 9 de junho de 2009


Fotografia

Fique de Olhos bem abertos para o trabalho do Barão.


Barão Wilhelm Von Gloeden (16 de Setembro de 1856 - 16 de Fevereiro de 1931)

Foi um fotógrafo alemão do século XIX. Seus trabalhos foram em grande parte inovadores, já que ele foi um pioneiro na fotografia ao ar livre com o uso do nu masculino. A incorporação de elementos clássicos da Grécia antiga à belas paisagens sicilianas compuseram a singularidade de sua obra.

Von Gloeden foi junto com seu primo Guglielmo Plüschow uma referência na produção artística antes da I Guerra Mundial, ficou conhecido internacionalmente no final do século XIX, mas só no início dos anos 70 do século XX é que foi redescoberto.

O lobo e a Estepe

"(...) Pois parece ser uma necessidade inata e imperativa de todos os homens imaginarem o próprio ser como uma unidade. E apesar dessa ilusão sofrer com freqüência graves contratempos e terríveis choques, ela sempre se compõe. O juiz que se senta defronte ao criminoso e o fita no rosto, e por um instante reconhece todas as emoções, potencialidades e possibilidades do assassino em sua própria alma de juiz e ouve a voz do assassino como sendo a sua, já no momento seguinte volta a ser uno e indivisível como juiz, volta a encerrar-se na envoltura do seu eu quimérico e cumpre seu dever e condena o assassino à morte. E se em algumas almas humanas, singularmente dotadas de percepção sensível, se levanta a suspeita de sua composição múltipla, e, como ocorre aos gênios, rompem a ilusão da unidade personalística e percebem que o ser se compõem de uma pluralidade de seres como um feixe de eus, e chegam a exprimir essa idéia, então imediatamente a maioria as prende, chama a ciência em seu auxílio, diagnostica esquizofrenia e protege a Humanidade para que não ouça um grito de verdade dos lábios desses infelizes".

     Extraído do livro "O lobo e a estepe" de HESSE, Herman.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Pound

"Somente nos cães e nos jovens encontramos a observação minuciosa".


 

Tsin-Tsu, sábio oriental – fragmento encontrado num poema de Ezra Pound.

Texto Ilustrativo


 

"A languidez de todas as coisas à minha volta era uma maravilhosa consonância com minha própria languidez. Ela a aumentava, consolando-a eu mergulhava nos abismos da incerteza. Mas essa tristeza era viva, bastante cheia de pensamentos, de impressões, de comunicações com o infinito, de claro-escuro em minha alma para que eu não desejasse subtrair-me a ela. Doença do homem, mas doença cujo o próprio sentimento é atrativo em vez de ser uma dor, e em que a morte se assemelha a um voluptuoso desvanecer no infinito. Estava resolvido a doravante entregar-me inteiro a ela, a me seqüestrar de toda sociedade que pudesse distrair-me dela e a me envolver em silêncio, solidão e frieza, no meio do mundo que eu encontraria então; meu isolamento espiritual era um sudário através do qual eu não queria mais ver os homens, mas apenas a natureza de Deus"

                    LAMARTINE, RAPHAËL. Ed. Hachette, p.6    

Fragmento

"Se só dependesse de mim eu faria dela um herói fatal como os admiro. Fatal quer dizer decidindo a sorte daqueles que o fitam, medusados. Eu a faria com ancas de pedra, faces polidas e lisas, pálpebras pesadas, joelhos pagãos tão belos que refletiriam a inteligência desesperada do rosto dos místicos. Eu a despiria de todo aparato sentimental. Se ela consentisse ser a estátua gelada. Mas sei bem que o pobre demiurgo é forçado a criar a criatura à sua própria imagem e ele não inventou lúcifer" GENET, Jean. Nossa Senhora das Flores.


 

Adorei o livro e recomendo.

Nossa Senhora Das Flores, Jean Genet.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Dois Palitos

  • Mulher de Princípio
Tomou no cu várias vezes, mas casou virgem.

  • A Sete Palmos
Sempre se aproveitaram de mim.
Agora é a vez dos vermes.

  • Queria ser escritor.
Começou mentindo para os pais.


  • Era hora de dar um salto na vida, escolheu a janela do 10° Andar.

Estes micro-contos foram extraídos do livro "Dois palitos" de Samir Mesquita.